Idanha-a-Nova: Câmara compra o edifício da EPRIN por duas vezes

A Câmara Municipal de Idanha-a-Nova comprou no fim de 2020 um edifício, por 260 mil euros, que já se encontrava nas suas mãos. "Autarquia financia vendedor", anuncia o jornal Público na edição desta 2ªfeira, dia 12 de Setembro. 

  • Região
  • Publicado: 2022-09-12 15:46
  • Por: Diário Digital Castelo Branco

O jornalista José António Cerejo escreve que "a Câmara Municipal de Idanha-a-Nova comprou a uma associação privada, no final de 2020, um edifício pelo qual pagou 260 mil euros. O inusitado da operação está no facto de o imóvel ter sido adquirido por usucapião, pela vendedora, dois meses antes. E sobretudo no facto de ele se encontrar nas mãos da compradora desde 1998 — ano em que foi comprado com dinheiro da autarquia, através de uma escola profissional, sem qualquer intervenção da associação vendedora. 

Mas há mais: a associação vendedora é financiada pela mesma autarquia em montantes próximos do milhão de euros anuais e não fez qualquer prova documental de que, conforme alegou na escritura de usucapião (que permitiu o registo do imóvel em seu nome para depois o vender ao município), era “dona e legítima possuidora” do prédio desde que o adquiriu em 1998 “enquanto entidade proprietária da Escola Profissional da Raia — Idanha-a-Nova (EPRIN)”. 

A única prova apresentada no cartório notarial de Lisboa onde a escritura de justificação da aquisição por usucapião e a posterior escritura de venda ao município foram feitas [cartório de Joaquim Barata Lopes, um notário natural da zona de Idanha-a-Nova que foi o primeiro bastonário da Ordem dos Notários] consistiu no testemunho de dois dos fundadores da própria associação e do actual presidente da assembleia municipal. Um dos fundadores da associação que testemunharam perante o notário foi Álvaro Rocha, o ex-autarca que ocupou o lugar de presidente da câmara até 2013. 

Por esclarecer está a razão pela qual a câmara optou por montar este complicado negócio e pagar 260 mil euros para ficar com o imóvel em seu nome, quando, entre outras soluções, poderia, sem qualquer gasto, ter sido ela a registar em seu nome o edifício comprado em 1998. Uma das hipóteses explicativas avançada por conhecedores locais do assunto reside na transferência encapotada de meios financeiros para o Centro Municipal de Cultura e Desenvolvimento de Idanha-a-Nova (CMCD) — a associação que registou e vendeu o edifício e que é vista por adversários do autarca local como “uma espécie de saco azul” do município. 

Criado em 1992 como associação de desenvolvimento local sem fins lucrativos, o CMCD teve à cabeça dos seus dez fundadores, todos a título pessoal, os nomes do então presidente da câmara, Joaquim Morão, de um dos seus sucessores, Álvaro Rocha, e dos seus amigos António Realinho e Rui Esteves. 

Estes dois tornaram-se conhecidos nos últimos anos: o primeiro, que foi vice-presidente e director da ADRACES, uma associação criada pelas câmaras da zona, por ter sido condenado em 2018 a quatro anos e meio de prisão efectiva por burla e falsificação; e o segundo por ter sido forçado a demitir-se do lugar de comandante nacional da Protecção Civil, em 2017, depois da divulgação de irregularidades cometidas na obtenção de uma licenciatura e por ter sido escolhido recentemente pelos presidentes de câmara da região para o cargo de administrador do Hospital de Castelo Branco. Embora o município não seja sócio-fundador desta associação, a sede que consta na escritura de constituição situa-se no próprio edifício dos paços do concelho e os estatutos dizem que o presidente da direcção é designado pela autarquia. 

 

USUCAPIÃO EM LISBOA 

Mas voltemos ao usucapião. Em 1993, seis meses depois da sua constituição, o CMCD juntou-se ao seu criador, o município local, e ambos celebraram com o Ministério da Educação um contrato-programa através do qual foi criada a EPRIN, como estabelecimento de ensino privado financiado pelo Estado. 

E no mês seguinte foi constituída e registada no Registo Nacional de Pessoas Colectivas uma entidade designada Escola Profissional da Raia — Idanha-a-Nova, “pessoa colectiva regular” com a “natureza jurídica” de “associação de direito privado” e o Número de Identificação de Pessoa Colectiva (que é também o número de identificação fiscal) 502956283. 

Pelo menos é o que se lê numa certidão emitida pelo Instituto de Registos e Notariado, que atesta o facto de a associação continuar a ter existência legal. 

Criada a entidade EPRIN — que se confundia com a câmara e era a responsável formal pelo estabelecimento de ensino —, foi ela que em 1998 comprou à diocese de Portalegre e Castelo Branco o vasto edifício de um antigo colégio católico, no qual a escola profissional ainda hoje funciona. Na escritura compareceu, “enquanto entidade promotora”, a Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, representada por um vereador, e dois membros da direcção da associação EPRIN, que eram simultaneamente directores da escola.

Consumado o negócio com o pagamento de 40 mil contos (200 mil euros), a propriedade foi registada na respectiva conservatória em nome da EPRIN (NIF 502956283) e assim se manteve até que, em Outubro de 2020, o CMCD conseguiu ficar com ela, recorrendo à figura do usucapião. 

Para isso, bastou que os seus representantes se deslocassem a Lisboa, com as testemunhas já referidas, e declarassem ao notário que “desde 1998 o CMCD entrou na posse do identificado imóvel, na convicção de que era o seu verdadeiro proprietário, pelo que, como a posse efectiva do prédio já dura há mais de vinte anos, de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé, sem interrupção e sem oposição de ninguém (...), o CMCD já adquiriu o identificado imóvel por usucapião (...)”. 

 

CÂMARA DIZIA-SE PROPRIETÁRIA 

Em apoio desta declaração, afirmaram que o CMCD entrou na posse do edifício em 1998 — precisamente o ano em que a EPRIN o comprou —, por força de um decreto-lei segundo o qual “os direitos e obrigações das escolas profissionais foram transmitidos para as entidades proprietárias”. Ficou por explicar como é que o CMCD se tinha tornado a “entidade proprietária” daquela escola. 

A escola pertencia à associação de direito privado designada EPRIN e tinha como promotores a Câmara e o CMCD. Em qualquer dos casos, mesmo que se considerasse que ela era propriedade dos promotores, o proprietário seriam os dois e não apenas um. Sucede ainda que a autarquia, pelo menos até 1999, sempre se considerou a única proprietária da escola e do edifício. 

Tanto assim é que numa escritura datada de Julho daquele ano — através da qual constituiu uma fundação designada Escola Profissional de Idanha-a-Nova, a câmara, representada pelo seu presidente, devidamente mandatado pelo executivo e pela assembleia municipal — declarou que transferia gratuitamente para a nova fundação “todo o património móvel e imóvel” que se encontra afecto à EPRIN. 

Desse património fazia parte, conforme atesta o respectivo balanço contabilístico anexo à escritura, o edifício onde a escola funcionava. A transferência de propriedade nunca chegou, porém, a concretizar-se, visto que a fundação não conseguiu preencher os requisitos necessários para ser reconhecida e poder funcionar. 

 

DA RAIA OU RAIANA? 

A isto acresce a circunstância de em 2007 ter sido constituída uma empresa denominada EPRIN — Escola Profissional Raiana, Unipessoal Lda, com o NIF 508224667, que nada tem que ver com a associação EPRIN (NIF 502956283). Mas foi baptizada com um nome idêntico, propiciando toda a espécie de equívocos. Tendo como sócio único o CMCD e como gerentes o presidente e a vice-presidente da Câmara, a nova EPRIN, não se conhecendo uma explicação, passou a intitular-se e a agir como proprietária do edifício e da escola igualmente chamada EPRIN. 

Quer isto dizer que, a ser propriedade de alguém que não fosse a associação em nome da qual estava registada, nem a câmara e o CMCD como promotores da escola, o edifício seria propriedade da empresa EPRIN Unipessoal e nunca da associação CMCD — ao contrário do que os seus representantes declararam na escritura para justificar a alegada posse do imóvel. Todavia, para reforçar a sua argumentação, o CMCD declarou na escritura que pretendia pôr o edifício em seu nome, mas que “não o tem podido fazer em virtude de a aquisição do prédio estar registada a favor da Escola Profissional da Raia — Idanha-a-Nova, que é uma entidade que não tem personalidade jurídica, nem pode, por isso, celebrar qualquer negócio jurídico que sirva de título para registar a aquisição a favor do seu verdadeiro proprietário, o CMCD (...)” 

 

PERSONALIDADE JURÍDICA 

Questionado, entre outras coisas, sobre a prova que foi feita de que o CMCD era a “entidade proprietária da escola” e sobre o que o levou a considerar válida a declaração de que a associação EPRIN não tinha personalidade jurídica, nem podia celebrar qualquer negócio jurídico — quando é “uma associação de direito privado” e “pessoa colectiva regular”, e até registou o prédio em seu nome —, o notário Barata Lopes não se alongou em explicações. 

Respondeu apenas que “a escritura de justificação foi realizada com observância de todas as regras legais aplicáveis, na interpretação do notário (...)” E que esta interpretação “é, naturalmente, susceptível de ser questionada e os actos notariais podem ser impugnados em sede própria por todos aqueles a quem a lei confere legitimidade para tanto”. 

Dois meses depois, após registo do edifício em nome do CMCD e aprovação da sua aquisição em reunião do executivo municipal — cuja acta o presidente da câmara, Armindo Jacinto (PS), se recusou a facultar ao PÚBLICO —, foi celebrada a escritura através da qual o município o comprou por 260 mil euros. 

Em resposta às perguntas que lhe foram dirigidas, Armindo Jacinto disse tão-só que “a câmara participou neste processo com total transparência e cumprindo escrupulosamente a tramitação legal que ao caso era aplicável”, adquirindo o imóvel “ao seu legítimo proprietário”. O PÚBLICO perguntou ao CMCD qual o destino dado ao produto da venda, mas não obteve resposta.

Igualmente questionado, José Adelino Gameiro, o líder do movimento independente que no ano passado elegeu dois vereadores para a câmara local (contra três do PS), respondeu que não conhece em que circunstâncias o antigo colégio foi adquirido e que o processo é anterior ao seu mandato. Em todo o caso, afirmou que “o assunto nunca foi tratado na câmara ou na Assembleia Municipal” desde que assumiu fun-ções. “Desconheço os concretos contornos do negócio e quais os objectivos que o presidiram. Procurarei informar-me sobre o assunto, para me poder pronunciar sobre ele”, sublinhou.

 

O SEGREDO DAS CONTAS 

Recorrendo a um expediente criativo que não é único nas autarquias, mas também não é usual, a Câmara de Idanha-a-Nova constituiu em 1992 uma associação privada à qual entregou um conjunto de tarefas que normalmente são assumidas pelos municípios e que por vezes se sobrepõem às suas próprias competências e iniciativas. Em resultado desta sobreposição, que permite a obtenção de financiamentos adicionais, frequentemente não se sabe onde é que entra a câmara e onde é que entra a associação, neste caso designada Centro Municipal de Cultura e Desenvolvimento (CMCD). A criação destas entidades pode abrir a possibilidade de subtrair dinheiros públicos ao escrutínio das oposições e dos cidadãos. 

Graças a elas, a gestão desses dinheiros fica espelhada apenas em contas privadas, que nem sequer são susceptíveis de acesso público, como acontece com as de qualquer empresa. No caso de Idanha-a-Nova, o município obteve nos últimos quatro anos, só através dos fundos do Portugal 2020, um financiamento global de 7,5 milhões de euros para os seus projectos, enquanto o CMCD encaixou 2,7 milhões (36% do total conseguido pela autarquia), a que se juntam 3,8 milhões destinados à Escola Profissional Raiana, Unipessoal, a empresa detida pelo CMCD que gere a Escola Profissional da Raia — Idanha-a-Nova. A estes financiamentos atribuídos ao CMCD acrescem as transferências anuais de perto de um milhão de euros provenientes do orçamento municipal e a cedência gratuita de edifícios e equipamentos da autarquia, incluindo um parque de campismo e um pequeno hotel que são geridos pela associação. O concelho de Idanha é o quarto maior do país em extensão e tem cerca de oito mil habitantes.

PUB

PUB

PUB

PUB