O regresso a Hendaia 50 anos depois é regressar ao salto para fugir à ditadura, à repressão e à miséria. É retrilhar, com os mesmos pés, o caminho da emigração para França, e voltar à fronteira onde todas as coisas começavam.
O regresso a Hendaia 50 anos depois é regressar ao salto para fugir à ditadura, à repressão e à miséria. É retrilhar, com os mesmos pés, o caminho da emigração para França, e voltar à fronteira onde todas as coisas começavam.
As palavras são todas deles, dos dois homens que caminham, lado a lado, pela areia, a recordar a fuga, o salto e o medo. A caminhar em frente, 50 anos para trás, e a dizer, com todos os quilómetros ainda na memória, que, ao fundo, a cordilheira separava a ditadura da liberdade.
Abílio Laceiras, de 69 anos, e Manuel Dias Vaz, de 66, saíram - um do Fundão, outro de Louriçal do Campo, no distrito de Castelo Branco - clandestinos, a salto, do mesmo Portugal, o que Manuel descreve: o Portugal da ditadura, da repressão, da miséria e da guerra colonial.
“Eu cheguei a França em outubro de 1963. Cheguei a Hendaia [depois de ter andado] 23 dias a pé, porque o percurso da emigração clandestina era terrível. Era dramático, era uma epopeia”, recorda Manuel Dias Vaz, que é hoje presidente do comité nacional francês de homenagem a Aristides Sousa Mendes e da Rede da Aquitânia para a História e Memória da Imigração.
Abílio Laceiras, correspondente do Jornal do Fundão em Paris, e que conta décadas de militância associativa e sindical em França, chegou a Hendaia no final de 1968, “em plena revolução de maio”. Atravessou Espanha com onze homens e com a sua mulher, grávida.
Esperaram horas na fronteira, retidos, porque não traziam passadores. “Horas depois, de noite, com frio, eu dirigi-me aos carabineiros e disse: ’das duas uma: ou o senhor nos prende, ou nos deixa seguir. A minha mulher não pode continuar assim’”, recorda.
E seguiram, com “pão e três latas de sardinha”. Aqui, diz Abílio Laceiras, onde começava a liberdade, haviam de começar todas as coisas, as boas e as más. Depois desta linha havia de pagar “muito dinheiro” para que outro português lhe encontrasse trabalho. Havia até de pagar o aluguer dos pratos e dos talheres que usou.
Manuel Dias Vaz recorda o medo: “A memória que eu tenho da estação [de comboios] é o medo. O medo, porque nós não tínhamos a capacidade de compreender que tínhamos chegado a um país democrático e livre. Porque a liberdade e a democracia não faziam parte do nosso registo quotidiano, faziam parte do nosso combate”.
Os dois homens regressam a Hendaia – por onde se estima que tenham passado, entre 1957 e 1974, mais de um milhão de portugueses em direção à Europa, sobretudo a França – com emoção. Regressam solenes, quase peregrinos.
Esta é, explica Manuel Dias Vaz, uma cidade simbólica, por várias imagens: “a estação de caminho-de-ferro, pela qual transitaram os portugueses que vieram para a Europa; a fronteira dos Pirenéus; a ponte de Hendaia, que é o começo da Nacional 10, a que muitos chamaram o cemitério dos portugueses; e o mar, porque, nos anos de 1920, e mesmo nos anos de 1960, alguns portugueses vieram para França de barco”.
“Para mim, voltar a Hendaia hoje é uma peregrinação. É olhar para o passado para compreender o presente: milhares de portugueses são [de novo] condenados a emigrar e a história repete-se”, acrescenta.
Para Abílio Laceiras, regressar aqui é revisitar as perguntas de depois do salto, as que se faziam deste lado da fronteira, pela primeira vez: “Para onde é que a gente vai? Qual vai ser o nosso rumo? Qual vai ser o nosso futuro?”. É lembrar-se de que “o futuro de [muitos portugueses] e de muitos lusodescendentes se decidiu nesta terra”.
© - Diário Digital Castelo Branco. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por: Albinet